Vivemos hoje a realidade das “sociedades de controle”[1]. E esse controle se dá, justamente, sobre os corpos e sobre a vida em todos os seus detalhes. O Estado legisla sobre nossos corpos, a educação nos impõe padrões de comportamento, a publicidade direciona nossos desejos, a ciência e a religião determinam as verdades em que devemos acreditar, o trabalho alienado nos torna “dóceis e úteis”. Dentro desse panorama, as ciências médicas cumprem um papel chave, controlando não apenas a vida e a morte, mas também como e quando a vida e a morte devem acontecer.

Nesse sentido, enxergar a realidade sobre o nascimento e o processo de medicalização do mesmo me revela o óbvio: o controle sobre a vida se inicia com o controle sobre o ato de nascer. No entanto, me parece que controlar o nascimento é significativamente mais difícil do que controlar o sujeito em outras instâncias de sua vida. Em primeiro lugar porque o nascimento é um evento absolutamente necessário para a manutenção da espécie humana, portanto não pode ser totalmente restringido. Em segundo lugar porque é um evento intimamente relacionado às características mais instintivas do ser humano e diretamente ligado à sexualidade, portanto é também um tabu. E, em terceiro lugar porque é um evento feminino por excelência e, em uma sociedade patriarcal e machista, os corpos femininos devem ser controlados enquanto meio de produção dos meios de produção, a saber: pessoas, mão-de-obra.

Se o nascimento não pode ser impedido, ao menos o parto pode. E a meu ver é aí que reside o sentido do tão significativo aumento do número de cesarianas. E, se o parto acontece pelas vias naturais, ele deve ser controlado, normatizado e normalizado, e aí reside o sentido de o parto normal ser aquele que segue um conjunto das regras e procedimentos que o tornam um evento aceitável e, na máxima medida possível, controlável. Se os médicos aprendem na faculdade que realizar determinados procedimentos de rotina é algo bom, eles o aprendem por uma razão. Inevitavelmente existe um projeto por trás das grades curriculares do curso de medicina, que é o mesmo projeto que faz com que prisões, hospitais, fábricas e escolas sejam lugares arquitetonicamente tão parecidos, emboram cumpram funções aparentemente tão diferentes. Ou não?

Por alguma razão, o homem teme aquilo que foge a seu controle. E o corpo feminino em trabalho de parto é exatamente isso: movimentos espasmódicos, gritos, secreções, algo de animal que deve ser calado, contido ou, ao menos, ocultado. E então o parto se torna também um evento para poucos, apenas pode estar ali quem é previamente autorizado. E não haverá testemunhas.

O medo e a culpa são os principais instrumentos de controle. Estamos todos submetidos à vigilância constante daqueles que exercem poder sobre nós: o professor, o médico, o patrão, o sacerdote. Somos vigiados, e podemos ser punidos por uma conduta que eventualmente transgrida a norma. Temos medo, sentimos culpa. A priori.

O ventre feminino, a fonte da humanidade, guarda os últimos segredos ainda não completamente esquadrinhados e subjulgados pelo homem: o dom da maternidade. Tão necessário e perigoso (ou periculoso) [2] ao mesmo tempo. Mas a mente feminina, essa sim pode ser suficientemente subjulgada e condicionada ao longo de toda uma vida. E é isso o que tem sido feito pelos séculos de patriarcado.
Parir: um ato político!
1. primeira nota
2. segunda nota

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